ONU enfrenta crise de credibilidade em mundo com recorde de conflitos

Organização admite que proteção de civis está “desmoronando”; 2024 registrou o maior número de guerras desde a Segunda Guerra Mundial.

Imagem: Reprodução

O ano de 2024 entrou para a história como o mais violento desde o fim da Segunda Guerra Mundial, com 61 conflitos armados registrados em 36 países, segundo relatório do Instituto de Pesquisas de Paz de Oslo. Os dados, baseados em levantamento da Universidade de Uppsala, revelam um cenário que expõe as limitações crescentes da Organização das Nações Unidas em cumprir sua missão fundamental de manter a paz e a segurança internacionais. As guerras resultaram em aproximadamente 129 mil mortes, consolidando uma tendência ascendente que faz dos últimos quatro anos os mais letais desde o fim da Guerra Fria.

O cenário de 2025 mostra-se ainda mais desafiador, com uma escalada dramática de conflitos que coloca em xeque qualquer esperança de estabilização global. O International Crisis Group alerta que “o regresso de Trump adiciona imprevisibilidade a um mundo já volátil”, enquanto a contagem mundial de mortos, deslocados e famintos devido a combates atingiu o nível mais alto em décadas. A situação se agravou drasticamente em junho, quando Israel e Irã iniciaram ataques diretos mútuos, culminando na entrada dos Estados Unidos no conflito através de bombardeios a três instalações nucleares iranianas. Esta escalada, que já deixou mais de 240 mortos nos dois países, representa um ponto de inflexão que especialistas temem possa desencadear uma conflagração regional com repercussões globais.

A própria ONU reconhece publicamente suas falhas. Em maio de 2025, o subsecretário-geral de Assuntos Humanitários, Tom Fletcher, admitiu que a proteção de civis em conflitos armados está “desmoronando”, apesar das lições históricas e dos compromissos legais assumidos pelos países. A organização registrou mais de 36 mil mortes de civis em apenas 14 conflitos durante 2024, número que Fletcher considera subestimado. O ano também se tornou o mais letal para trabalhadores humanitários, com 360 mortes registradas, evidenciando o colapso dos mecanismos de proteção internacional.

Especialistas em relações internacionais não poupam críticas à paralisia institucional da ONU. Fawaz Gerges, professor da London School of Economics, afirma categoricamente que “a ONU está em coma” e considera o momento atual “pior que a Guerra Fria”. Para o acadêmico, o Conselho de Segurança encontra-se “paralizado e disfuncional”, enquanto a Assembleia Geral funciona mais como “uma instituição simbólica que uma agência executiva”.

A multiplicação de focos de tensão em 2025 evidencia a incapacidade da ONU de conter a fragmentação global. Além do conflito Israel-Irã, persistem as guerras na Ucrânia e em Gaza, enquanto novos pontos de instabilidade emergem no Mar do Sul da China, na península coreana e em torno de Taiwan. Analistas alertam que os conflitos interconectados aumentam exponencialmente a probabilidade de consequências imprevistas, com o risco de que um erro de cálculo em qualquer teatro de operações desencadeie uma reação em cadeia global.

O problema estrutural da ONU reside em sua configuração anacrônica, que reflete o mundo de 1945. Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança – Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia e China – mantêm poder de veto absoluto, permitindo que um único país bloqueie resoluções mesmo com apoio massivo dos demais. Continentes inteiros como África e América Latina não possuem representação permanente, assim como a Índia, um dos países mais populosos do mundo, e nenhuma nação com população predominantemente muçulmana integra o grupo dos cinco permanentes.

Os casos de Gaza e Ucrânia ilustram dramaticamente essa disfunção. Desde o início da guerra em Gaza, o Conselho de Segurança não conseguiu aprovar uma resolução de cessar-fogo, com os Estados Unidos vetando duas propostas. Na Ucrânia, a Rússia bloqueou sistematicamente resoluções condenatórias. Mesmo quando a Assembleia Geral aprova medidas por esmagadora maioria – como o cessar-fogo em Gaza, apoiado por 153 dos 193 países membros – as decisões permanecem sem força vinculante.

O impacto humanitário dessa ineficácia é devastador. O Alto Comissariado da ONU para Refugiados contabilizou 43 emergências globais em 2024, com o número de pessoas forçadas ao deslocamento dobrando entre 2016 e 2025, saltando de 67 milhões para cerca de 140 milhões.

Mais de 612 milhões de mulheres e meninas vivem atualmente em zonas de conflito, enfrentando violência sexual sistemática e negação de direitos reprodutivos. O financiamento para operações humanitárias não acompanha o crescimento exponencial das necessidades, deixando populações vulneráveis sem proteção adequada.

A necessidade de reforma da ONU torna-se cada vez mais urgente diante da “mudança estrutural no cenário global”, como define a pesquisadora Siri Aas Rustad, do Instituto de Oslo. Especialistas propõem desde a criação de assentos permanentes para União Europeia e representantes regionais até a imposição de condições ao poder de veto e a possibilidade de a Assembleia Geral superar vetos por maioria qualificada.

Contudo, qualquer reforma exige aprovação de dois terços dos países membros e unanimidade dos cinco permanentes – um paradoxo que perpetua o status quo. Enquanto isso, o mundo assiste ao agravamento de conflitos sem uma instância internacional eficaz para contê-los, questionando a relevância de uma organização criada para evitar exatamente esse cenário.

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