Pepe Mujica: A trajetória de um ícone da esquerda, da guerrilha à presidência do Uruguai e à luta pela vida
Ex-presidente uruguaio, conhecido pela vida simples e políticas progressistas, enfrentou a ditadura, inspirou movimentos sociais e combateu um câncer de esôfago, deixando um legado de resistência e coerência.

José Alberto Mujica Cordano, conhecido mundialmente como Pepe Mujica, transcendeu a figura de ex-presidente do Uruguai para se tornar um símbolo de resistência, coerência política e um estilo de vida despojado que cativou a esquerda global. Sua trajetória, marcada pelo enfrentamento à ditadura militar uruguaia, pela militância na guerrilha dos Tupamaros e por uma presidência que priorizou avanços sociais, deixou um legado complexo e inspirador. Nos últimos tempos, Mujica travou uma derradeira batalha contra um câncer de esôfago, doença que se agravou e o levou a receber cuidados paliativos.
Mujica morreu ontem (14/5).
Nascido em Montevidéu em 1935, Mujica ingressou na luta armada nos anos 1960 como membro do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros. O grupo ficou conhecido por ações como assaltos a bancos para distribuir os recursos aos mais pobres, antes mesmo da instauração do regime ditatorial em 1973. Durante esse período de clandestinidade, foi ferido quatro vezes e preso diversas vezes, protagonizando fugas até ser recapturado definitivamente em 1972. Ao todo, passou 14 anos encarcerado, enfrentando torturas e longos períodos em solitária, sendo um dos presos considerados “reféns” do regime, sob ameaça de execução sumária caso os Tupamaros retomassem as atividades.
Com a redemocratização, Mujica foi libertado em 1985, beneficiado por uma lei de anistia. Ingressou na política institucional, cofundando o Movimento de Participação Popular (MPP), um dos principais partidos da coalizão de esquerda Frente Ampla. Sua carreira política o levou a ser eleito deputado em 1994, senador em 1999 e ministro da Agricultura em 2005, no governo de Tabaré Vázquez. Em 2010, foi eleito presidente do Uruguai, sucedendo Vázquez e governando até 2015.
Sua presidência foi marcada por um aumento significativo nos gastos sociais, que passaram de 60,9% para 75,5% dos gastos públicos, e por um aumento de 250% no salário-mínimo. Medidas progressistas como a legalização do consumo e da venda da maconha e a aprovação do casamento homoafetivo colocaram o Uruguai na vanguarda de pautas sociais na América Latina. No entanto, foi seu estilo de vida austero que mais chamou a atenção internacional: Mujica recusou-se a morar no palácio presidencial, preferindo sua modesta chácara nos arredores de Montevidéu, e ficou famoso por dirigir seu próprio Fusca 1987. Acredita-se que doava cerca de 90% de seu salário presidencial para projetos de combate à pobreza.
Após deixar a presidência, retornou ao Senado, cargo ao qual renunciou em 2020 por motivos de saúde, em meio à pandemia de Covid-19. Declaradamente ateu durante a maior parte da vida, expressava uma admiração quase panteísta pela natureza. Sua luta contra o câncer de esôfago, anunciado em abril de 2024 e que se agravou nos meses seguintes, foi acompanhada com apreensão, mas sua figura como referência de uma esquerda humanista e de um líder dedicado ao seu povo permanece como um marco na história política contemporânea.