A morte de Silvio Santos neste sábado, 17, não representa apenas o fim de uma era na TV, mas nas comunicações do Brasil. Silvio Santos não foi só um empresário de mídia, mas um personagem dela – e certamente o maior de todos.
Silvio Santos atravessou gerações e todas as classes sociais.
Os últimos dados qualitativos de Ibope sobre o programa dele, aos quais tive acesso, em 2018, mostravam que o Programa Silvio Santos tinha um público que abrangia dos 16 anos aos 60+, e que era prestigiado por pessoas das classes A até a D.
Os desfavorecidos o adoram. Os ricos o admiram. A classe artística tem por ele reverência.
Até os jornalistas sempre o respeitaram. E olha que hoje em dia isso significa muito.
Tive a sorte de conhecê-lo e ser jurado do seu Troféu Imprensa por nove anos.
Era brincalhão, afável, mas quando ouvia um pedido de entrevista, se esquivava com a mesma velha desculpa: “Uma vidente disse que, se eu der entrevista, vou morrer.”
Sua TV até hoje tem “discípulos” defensores nas redes sociais. Não por acaso, o slogan da emissora é “A TV que tem torcida”. E tem mesmo.
Silvio Santos cativou essa torcida por décadas, e um dos motivos se chamava Chaves. O outro motivo, seu próprio dono.
Os funcionários do SBT o veneravam. Em 27 anos cobrindo mídia, jamais ouvi alguém falar mal da emissora ou de Silvio. E não é por bajulação. As pessoas passam décadas trabalhando lá. Não querem sair.
Como empresário, Silvio implantou uma cultura de respeito aos trabalhadores. Nunca atrasou um só dia de pagamentos. Dava todo tipo de benefícios aos funcionários. Nem nos momentos de crise nacional ele fez demissões em massa, como Globo e Record, por exemplo. Até a cesta de Natal era esperada pelos funcionários com ansiedade, todos os anos – tal sua rara fartura.
Quando a pandemia começou, em março de 2020, Silvio não queria de jeito nenhum reduzir salários, algo autorizado pelo governo. Quem acabou fazendo isso, sem autorização dele, foi sua filha Daniela Beyruti. Mas isso só depois de o faturamento de todo o Grupo Silvio Santos ter despencado.
Vejam: O Grupo SS foi de longe o mais afetado pela pandemia de coronavírus.
A Jequiti Cosméticos quase entrou em colapso, com os depósitos abarrotados de produtos, especialmente perfumes. Afinal, quem iria comprar perfumes para ficar trancado em casa ou na rua usando máscara?
As vendas de Tele Sena caíram aos menores níveis históricos. O produto foi feito sob medida para os idosos, mas eles não podiam mais sair de casa para comprar seus bilhetes. E muitos ainda não estavam familiarizados com a internet.
A programação do SBT sofreu um golpe violento também: seu maior apresentador e maior faturamento teve de se retirar do vídeo, por conta da idade e do risco da doença.
Não tinha como ficar pior para Silvio Santos, e ainda assim ele manteve todo o grupo unido e não demitiu artistas ou jornalistas da casa.
Teimoso e contrariando médicos e a família, ele tentou várias vezes retomar as gravações de programas entre 2021 e 2022. A família e executivos do SBT argumentavam que era impossível, já que, para começar, não poderia haver plateia e que ele poderia se contaminar.
O teimoso insistia, mas, toda vez que ele pisava no SBT, tinham de tirá-lo de lá às pressas pois surgiam novos surtos de covid-19 no Complexo Anhanguera.
A teimosia, aliás, era conhecida não só no SBT, mas dentro de casa.
Exemplo: só foi internado por causa do vírus influenza em julho, porque se recusava a tomar qualquer medicamento em casa. “Estou ótimo”, repetia à família. Só deixou Íris e as filhas o levarem ao hospital quando seu quadro começou realmente a piorar.
Na vida privada, foi um homem e um pai discreto. Alguém se lembra de ter ouvido falar em algum escândalo ou fofoca envolvendo Silvio Santos?
No máximo, foi “cancelado” pelas muitas bobagens que falava na TV. A medíocre ‘seita do politicamente correto’ tentou cancelá-lo inúmeras vezes.
Foi acusado de ser machista, misógino, por “objetificar” a mulher e até por “assédio” moral -simplesmente porque disse a uma jornalista que ela não precisava dar opinião nos jornais – só apresentá-los.
Para sorte do Brasil, a ‘seita’ fez papel ridículo (eufemismo), pois Silvio sempre foi ‘incancelável’.
Ele podia ser um conservador, mas sob seu comando o SBT foi pioneiro em duas atitudes identitárias que deixaram Globo e sua “lacração” comendo poeira.
Antes do ESG virar moda, ele já levava trans e travestis em seus programas, como “colegas de trabalho”.
E em 2011, foi no SBT que o Brasil viu pela primeira vez um beijo gay numa novela. Durou quatro segundos, e aconteceu entre as personagens Marcela (Luciana Vendramini) e Marina (Giselle Tigre), na novela Amor e Revolução.
Também cometeu vários erros. Considerava que o(s) governo(s) eram seus patrões, uma vez que a TV era uma concessão. Graças a esse erro de avaliação (ou puro medo), fez a emissora perder independência e senso crítico.
Também a fez flertar com a bajulação explícita (A Semana do Presidente) e, justamente por tudo isso, nunca investiu em jornalismo.
Se tem algo no SBT que não tem a menor relevância – e nunca terá – é justamente o jornalismo. Isso é um dos poucos legados negativos que ele deixa.
Por Ricardo Feltrin – Estadão